A saga cigana
A história e os segredos do povo
mais misterioso do mundo
por Texto Luciano Marsiglia
Imagine
um mundo em que as pessoas não tenham endereço fixo, documentos, conta em
banco, carteira assinada nem história. E que a vida deles passe despercebida,
como se não existisse. Que a única certeza é que nunca faltará preconceito e
ignorância, medo e fascínio, injustiças e alegrias ao longo de sua interminável
jornada. Bem-vindo ao mundo cigano.
Ou
melhor: à imagem que temos dele. O universo cigano é tão antigo e extenso, tão
cheio de crenças e histórias que nem mesmo seu próprio povo conhece bem o limite
entre verdade e lenda. É que o nome “cigano” designa muitos povos espalhados
por quase todas as regiões do mundo. Povos com diferentes cores, crenças,
religiões, costumes, rituais, que, por razões às vezes difíceis de compreender,
foram abrigados sob esse o imenso guarda-chuva (assim como populações muito
diferentes são chamadas de índios).
A
história dos ciganos é toda baseada em suposições. E a razão é simples: faltam
documentos. Os ciganos são um povo sem escrita. Eles nunca deixaram
nenhum registro que pudesse explicar suas origens e seus costumes. Suas tradições
são transmitidas oralmente, mas nem disso eles fazem muita questão –
os ciganos vivem o hoje, não se interessam por nenhum resquício do passado e
não se esforçam por se manterem unidos. A dificuldade em se fixar, o conceito
quase inexistente de propriedade e a forma com que lidam com a morte –
eliminando todos os pertences do falecido – dificultam ainda mais o trabalho
aprofundado de pesquisa.
Uma
teoria, contudo, é aceita pela maioria dos especialistas. A partir da
constatação da semelhança entre as línguas romani (praticada pelos rom, o maior
dos grupos ciganos) e hindi (variação do sânscrito, praticada no noroeste da
Índia, onde hoje fica o Paquistão), foi possível elucidar a primeira e grande
diáspora cigana. Um grande contingente, formado, possivelmente, por uma casta
de guerreiros, teria abandonado a Índia no século 11, quando o sultão persa
Mahmoud Ghazni invadiu e dominou o norte do país. De lá, emigraram para a
Pérsia, onde hoje fica o Irã. A natureza nômade de muitos grupos ciganos,
entretanto, também permite supor um movimento natural de imigração que tenha
chegado à Europa conforme suas cidades se desenvolviam, oferecendo
oportunidades de negócios para toda sorte de viajantes e peregrinos.
É
provável que, pelo caminho, por volta do século 15, tenham passado pelo Pequeno
Egito, uma região do Peloponeso, no interior da Grécia. Pelo menos era de lá
que eles diziam vir a quem perguntava a sua origem. Daí o nome gypsy (em inglês), ou gitanos (em
espanhol). Mas, antes disso, ainda no século 13, um documento
escrito por um patriarca de Constantinopla já advertia sobre a presença dos
adingánous, um
povo errante que, dizia, ensinava coisas diabólicas. O registro é o
primeiro a tratar os ciganos de forma pejorativa e a registrar o medo que as
cidades européias sentiam de suas caravanas. Era o começo da sina cigana.
“Desde
o início do contato com o Ocidente, eles foram causa de conflitos, provocadores
de desordem e subversivos ao sistema. E sofreram todo tipo de perseguições
religiosa, cultural, política e racial”, diz Aluízio Azevedo, mestre em
história cigana pela Universidade Federal de Mato Grosso e ele mesmo um cigano
calon (veja no quadro ao lado os principais grupos ciganos). É difícil saber o
que veio primeiro: hábitos pouco ortodoxos ou o preconceito em relação a uma
cultura tão diferente. Os ciganos tinham a pele escura, muitos filhos, uma
língua indecifrável e origem desconhecida. Talvez a falta de oportunidades de
emprego tenha sido a causa do seu destino artístico. Eram enxotados e então se
mudavam, levando novidades dos lugares de onde vinham. Assim, surgiu a fama de mágicos,
feiticeiros. Se todos acreditavam nisso, por que não aproveitar para
fazer dinheiro? E, então, as mulheres passaram a ler as mãos, a prever o
futuro. Negociar objetos era outra forma de sobrevivência: os ciganos tinham
acesso a mercadorias
“exóticas” e podiam levar sua tralha para onde quer que fossem.
Os
bandos que chegavam ao continente europeu eram liderados por falsos condes,
duques ou outros títulos de nobreza. Observando os peregrinos europeus, que
entravam e saíam facilmente das cidades, copiaram a idéia de salvo-conduto –
uma espécie de pai do passaporte. Os ciganos inventavam que seus documentos
haviam sido expedidos por Sigismundo, rei da Hungria. Justificavam a vida
nômade dizendo que bispos os haviam condenado a peregrinar durante 7 anos como
penitência pelo abandono da fé cristã. Alguns dos salvos-condutos permitiam até
que furtassem quem não lhes desse esmolas. Uma tática para aumentar a chance de
ser aceitos nas comunidades, fazer negócios e exibir seus dons artísticos. Até
que a farsa acabava e eles pulavam novamente para outra cidade.
Durante
a Reconquista Cristã de 1492, na península Ibérica, árabes, judeus e ciganos
foram expulsos – muitos deles vieram para as Américas. Um século mais tarde,
eram varridos da França, por Luís 12, e da Inglaterra, por Henrique 8o. Logo
depois, a rainha Elisabeth 1a decretou que ser cigano era crime punido com
morte. Uma das lendas que surgiram nessa época, e que até hoje perdura, é a de
que um dos ferreiros que fizeram os pregos que prenderam Jesus na cruz era
cigano. Por isso, sua gente teria sido amaldiçoada com uma vida nômade. E dessa
forma construiu-se a imagem de povo errante, místico, perigoso e contraventor.
Assim, no contato com as imagens construídas e alimentadas no Ocidente, foi
criado o conceito de um povo cigano.
E o que é ser cigano?
Definir
a identidade cigana é bem mais difícil do que parece. Subdivididos em 3
principais etnias (rom, calon e sinti), eles não constituem um povo homogêneo.
Nem todos são nômades. Nem todos falam romani. Nem todos dançam ao redor de
fogueiras ou usam roupas coloridas. Podem ser pobres ou ricos. Podem ser
cristãos, muçulmanos, judeus. O que faz deles um povo é uma sensação comum de
não serem gadgés – como eles chamam os não-ciganos – e de se identificarem como
rom, calon ou sinti. “O termo ‘cigano’ só funciona nessa oposição”, diz o
pesquisador Frans Moonen, autor do livro Anticiganismo – Os Ciganos na Europa e
no Brasil.
Mas,
apesar de todas as divergências, algumas características permitem traçar um
perfil comum a esses grupos. A primeira delas é o espírito viajante. Ainda
que nem todos sejam nômades, os ciganos não se sentem pertencentes a um único
lugar. Não
criam raízes, não têm uma noção concreta de propriedade – estão sempre fazendo
negócios com seus pertences, preferencialmente em ouro, que não perde valor e é
aceito em qualquer nação (por isso a imagem cigana é vinculada ao uso do ouro
como adereço, especialmente nos dentes das mulheres). Eles não gostam de se
submeter a leis e a regras que não sejam as deles. Prezam, acima de tudo, a
liberdade. Assim, podem até se estabelecer por muito tempo em um
mesmo lugar (como é comum entre os sinti). Mas, nesse caso, procuram morar em
uma mesma rua ou, de preferência, em acampamentos onde possam preservar sua
autonomia e manter a unidade familiar – outro aspecto primordial na vida
cigana.
É
em torno da família que uma comunidade cigana se organiza. Há um líder, sempre um homem, nomeado por
mérito e não por herança. Ele é escolhido levando em conta vários
aspectos. Um deles, importantíssimo para conseguir alugar um terreno, montar um
circo ou participar de feiras, é ter um documento de identidade, o que se
tornou um verdadeiro desafio – o cigano não consegue registrar o nascimento dos
filhos porque não possui documentos próprios, em um processo sem fim. Também
deve ser um bom interlocutor entre o poder público e seu grupo, além de ter habilidade
para resolver os problemas internos do acampamento. É ele quem dita as regras,
divide as tarefas, cria as leis do grupo.
A
sociedade cigana é patriarcal, quase machista. Ao se casar, o homem vira o
responsável pelo sustento do lar. A mulher passa a morar com a família do
marido e deve cuidar dele, dos sogros, da casa e dos filhos. Isso costuma
acontecer cedo, ainda na adolescência: logo após a primeira menstruação, a
menina já é considerada apta para casar e ter filhos. A noiva deve ser virgem. Tradicionalmente,
sua pureza é comprovada em um dos rituais da longa festa de casamento, em que o
lençol da noite de núpcias é exibido para toda a comunidade. Antigamente, os
pais do noivo deviam pagar um dote à família da moça, mas esse hábito já não
existe mais na maior parte dos acampamentos.
O
casamento entre primos, no entanto, continua sendo estimulado, também na
tentativa de preservar o núcleo familiar. É natural que em comunidades nômades
seja mais difícil acontecer um casamento entre ciganos e gadgés. Mas é possível
e permitido. Nesse caso, o homem ou a mulher deve mudar de vida. Ser cigano não
depende do sangue – se o gadgé optar por se integrar ao grupo, automaticamente
vira um deles.
À
medida que se estabeleceram na Europa e nas Américas, os ciganos assimilaram
cerimônias e ritos ocidentais. No Brasil, por exemplo, o catolicismo foi adotado pela
maioria (é comum encontrar imagens da Nossa Senhora Aparecida nas
barracas). Mas algumas tradições permanecem fortes. A simbologia da morte é a
principal delas. “Quando um cigano morre, há um processo de morte que se
instala em todos os indivíduos do grupo”, afirma Aluízio. Os calon realizam rituais
de cura assim que é diagnosticada a doença. Além de aceitar a medicina tradicional, eles
recorrem a rezas, correntes de orações, garrafadas de ervas, chás e simpatias,
geralmente ministradas por uma curandeira do grupo.
Durante
o velório, o morto é o centro do ritual e, dependendo da posição que ele
ocupava, a família se reestrutura: uma nova liderança terá que ser eleita. O
corpo do falecido é lavado, untado com ervas aromáticas e vestido
adequadamente. Esse momento de sofrimento e cumplicidade é importante para a
identidade do grupo. Como em outras culturas, percebe-se a possibilidade de
transcendência. No caso dos ciganos, esse é o momento de encontrar a sua alma
naturalmente viajante.
Em
alguns acampamentos, eliminam-se todos os pertences do morto. Até o seu trailer
chega a ser queimado. “É como um corte na história. Nada é guardado, não se
resgata o passado”, diz Florencia Ferrari, estudiosa do assunto e autora do
livro Palavra Cigana. Depois da morte de um membro, muitos grupos ciganos se
mudam para outro acampamento.
Os ciganos hoje
Imagina-se
que existam 15 milhões de ciganos espalhados pelo mundo. Como tudo relacionado
a esse universo, essa é só uma estimativa – eles vivem à margem da sociedade e
não costumam participar de pesquisas de censo demográfico.
E
isso, por si só, já é uma polêmica. Em maio deste ano, o premiê italiano,
Silvio Berlusconi, autorizou que fosse feito um censo especial para mapear a
presença de ciganos sem moradia fixa na periferia das grandes cidades
italianas. O censo incluiria dados como etnia, religião e impressão digital –
que não são exigidos na identidade dos italianos. Os ciganos saíram às ruas em
protesto, argumentando que essa seria uma ferramenta racista e discriminatória.
A
medida foi considerada ilegal pelo Parlamento Europeu, já que impõe exigências
desiguais a cidadãos do bloco. Mas os ciganos continuam com medo de ser
expulsos do país, ainda que um terço dessa população não seja nem mesmo
imigrante.
O
receio é justificável: desde o século 15 os ciganos não têm um momento de
folga. Até o século 19, eles foram escravizados na região onde hoje é a
Romênia. Durante a 2a Guerra Mundial, foram perseguidos pelos nazistas, sendo,
de acordo com alguns historiadores, o povo mais dizimado pelo Holocausto: do 1
milhão de ciganos que vivia na Europa, 500 mil foram assassinados. Muitos dos
sobreviventes emigraram para os EUA, daí a lei que impedia sua entrada no
estado de Nova Jersey, que só foi abolida nos anos 90.
“Na
Europa, em praticamente todos os países, os ciganos são a minoria mais
discriminada, muito mais do que os judeus ou os negros”, diz Moonen. E no
Brasil não é muito diferente. O primeiro grupo de ciganos, de maioria calon,
chegou por aqui no século 16, deportados de Portugal. Os rom vieram de forma
voluntária a partir da 2a metade do século 19. Naquela época, eram comerciantes ambulantes
de escravos, cavalos e artesanatos. Hoje compram e vendem carros, televisores e
toalhas. Os mais recentes, às vezes bem pobres, vieram do Leste
Europeu após a derrocada da União Soviética. Alguns são sedentários, mas a
maioria se mantém na vida itinerante. Todos sofrem com desconfianças e
preconceitos.
A
cidade de Sousa,
no interior da Paraíba, é um caso clássico. Os cerca de 450 ciganos
fixados há anos por lá não recebiam entregas de correio nem tinham o lixo
coletado em seu acampamento. Curiosamente, muitas escolas recusavam a matrícula
de crianças ciganas. O caso ficou bem conhecido na região: foi necessária a
intervenção da Procuradoria da República da Paraíba para resolver a questão.
Tanto
no Brasil quanto na Europa, o analfabetismo entre os ciganos é alto. Por aqui,
segundo a historiadora Isabel Fonseca, 3 em cada 4 mulheres ciganas são
analfabetas. Por lá, escolas que só aceitam ciganos têm os piores níveis de
qualidade. A falta de estudo e a vida à margem os empurram cada vez mais para a
criminalidade, o que alimenta as visões deturpadas e generalizadas que
sobrevivem desde os primeiros contatos entre ciganos e europeus. Enquanto não
forem compreendidos, eles se mudarão e começarão tudo de novo. Seguirão vivendo
sua saga cigana.
“Parece
que os ciganos vieram ao mundo somente para ser ladrões: nascem de pais
ladrões, criam-se com ladrões, estudam para ser ladrões (...).”
–
La Gitanilla, Miguel de Cervantes, 1613.
Iguais, mas diferentes
Quem são os 3 principais grupos
ciganos
Rom ou Roma
Predominantes
nos países balcânicos, principalmente na Romênia, falam romani, a mais conhecida das
línguas ciganas, e são o grupo mais estudado pelos pesquisadores. São divididos em
subgrupos: kalderash, matchuaia, curcira, entre outros. Consideram-se os
“ciganos autênticos”.
Sinti
Também
chamados de manouch, são mais numerosos na Itália, no sul da França e na
Alemanha. Falam a lingua sintó, para alguns pesquisadores, uma variação do
romani. Não há estudos que apontem a presença significativa desse grupo no
Brasil.
Calon ou Kalé
Conhecidos
por “ciganos ibéricos”, já que viviam na Espanha e em Portugal antes de se
espalhar pelo resto da Europa e da América do Sul. São os criadores do flamenco e responsáveis
pela popularização da figura da dançarina cigana. Falam a língua caló e são o grupo
mais numeroso do Brasil.
Verdade ou mentira?
A origem das histórias do
imaginário cigano
Ciganas lêem a sorte
Amparados
pelo mistério que os rodeava, os ciganos perceberam que poderiam utilizar a
curiosidade dos povoados sobre o futuro como um modo de fazer negócio e ganhar
dinheiro. A crença virou parte da cultura cigana. Hoje, as ciganas lêem até
mesmo a sorte de outras mulheres do grupo, mas, nesse caso, sem dinheiro
envolvido.
Ciganos roubam
crianças
Essa crença pode ter vindo do hábito dos ciganos de circo de
incorporar à trupe crianças órfãs ou abandonadas que se encantavam pelo seu
estilo de vida. Mas o mais provável é que o medo
daquele povo desconhecido o tenha transformado em uma espécie de bicho-papão
para os europeus.
Ciganos são negociantes
É
possível que sua vida errante tenha favorecido atividades relacionadas ao
comércio. Além de terem acesso a objetos “maravilhosos” dos lugares por que
passavam, conseguiam carregar a sua forma de sustento numa mala sempre que
precisavam levantar acampamento.
Ciganos são
trapaceiros
Na
Idade Média, aquelas pessoas exóticas e desconhecidos eram vistas como bruxas (muitas
foram queimadas durante a Inquisição). A vida à margem da sociedade
muitas vezes os empurrava à criminalidade. As outras formas que encontravam
para ganhar dinheiro – comércio e leitura de mãos – colocavam à prova sua
honestidade. Essa confluência de fatores pode ter criado a imagem do cigano
trapaceiro.
Ciganos falsificam
ouro
Tradicionalmente,
muitos grupos ciganos dominam o trabalho com metais. Algumas etnias carregam
isso até no nome, como os kalderash (“caldeireiros”, em romani). No Brasil, os
ciganos participaram da exploração de minas de ouro no século 18. Junte-se tudo
isso à fama de trapaceiros e fica fácil entender a crença de que eles
falsificam metais.
Ciganos honram a
palavra
Como são um povo sem
escrita, as leis ciganas são regidas com base na palavra dada. O
não-cumprimento de uma regra ou de um acordo representa uma grande ofensa à
sociedade cigana, e quem o faz é desmoralizado perante o grupo.
Para saber mais
Anticiganismo
– Os Ciganos na Europa e no Brasil
Frans
Moonen, Centro de Cultura Cigana,
2008.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/index.html
História
do Povo Cigano
Angus
Fraser, Teorema (Portugal), 1997.