COMO O CIGANO ENGANOU O DIABO
É
lendária e folclórica a imagem da esperteza dos ciganos, povo nômade que, por
tradição e necessidade, fez dos negócios sua principal fonte de rendas. Nas vendas
e nas trocas apregoa-se que é impossível enganar um cigano. Em nossa literatura,
há inúmeros contos que retratam essa inteligência aguçada para o lucro e a
agilidade com que parecem trapacear, mas que, na verdade, apenas exploram a pretensa
esperteza de seus clientes, ou oponentes, em benefício próprio. Quando imaginam
estar ludibriando um cigano, na realidade está apenas sendo ludibriado pela
própria esperteza. Há, nos contos e lendas sobre os ciganos narrativas
interessantes, que se tornaram tradicionais e, ao longo dos anos, foram sendo
adaptadas e recontadas, atualizadas, modernizadas, mas sem perder aquele
tempero próprio que ressalta a inteligência e a sagacidade cigana. O conto a
seguir, , tem sua fonte no folclore eslavo e foi compilado por A. H. Wratislaw,
em seu livro Sessenta Contos Folclóricos de Fontes Exclusivamente Eslavas,
publicado em Boston, EUA, por Houghton, Mifflin, & Company, em 1890.
O DIABO E O CIGANO
A. H. WRATISLAW
Um
velho cigano empregou-se como servo do diabo, que lhe disse:
—
Eu te darei o que desejares para me trazer lenha e água regularmente e manter o
fogo aceso sob o caldeirão.
—
Feito! — respondeu o velho cigano.
O
diabo lhe deu um balde e ordenou:
—
Vai ao poço e tira um pouco de água.
Nosso
cigano saiu, foi ao poço, apanhou água no balde e tentou retirá-lo com um
gancho, mas, por ser velho, não conseguiu tirá-lo e foi obrigado a deitar fora
a água a fim de não perder o balde. Mas com o que voltaria agora para seu
patrão? Bem, o cigano arrancou uma estaca de uma cerca e revolveu a terra ao
redor do poço, como se estivesse cavando. O diabo esperou, esperou e, como o
cigano não retornava mesmo, ficou sem a água. Depois de algum tempo, saiu à
procura do cigano e perguntou:
—
Mas por que demoras assim? Por que não trouxeste logo a água?
—
Bem, como? Eu queria tirar o buraco do poço todo fora para levá-lo para você,
assim nunca lhe faltaria água!
—
Mas você teria desperdiçado tempo, se tivesse feito algo assim. Não me trouxe o
balde a tempo nem manteve o fogo aceso, pois a quantidade de lenha não pode ser
diminuída.
E
tirou a água e levou-a ele próprio.
—
Ah! Se eu soubesse, teria feito isso há muito tempo — emendou o cigano.
O
diabo o enviou então à floresta para buscar lenha. O cigano começou, mas a chuva
o apanhou na floresta e molhou-o completamente. O velho enregelado não
podia
inclinar-se para apanhar as varas. O que iria fazer? Bem, ele arrancou fibras dos
arbustos e juntou várias pilhas, tecendo cordas. Foi ao bosque e amarrou uma árvore
a outra com essas cordas. O diabo esperou e esperou e estava fora de seu juízo
por conta do cigano. Foi até lá e, quando viu o que estava acontecendo, quis saber:
—
O que você está fazendo para se atrasar tanto?
—
O que estou fazendo? Quero levar-lhe madeira. Estou amarrando toda a floresta
em um pacote, a fim de não perder tempo.
O
diabo viu que estava perdendo tempo com o cigano, tomou a lenha e foi para
casa.
Depois
de resolver seus assuntos em casa, foi até um velho diabo para pedir seus
conselhos:
—
Eu contratei um cigano, mas ele é muito folgado e incômodo. Nós, os diabos,
somos razoavelmente espertos, mas ele é ainda mais esperto do que nós. E o será
até que eu o mate — confessou, furioso.
O
velho diabo pensou por alguns instantes, depois sugeriu:
—
Bom, quando ele se deitar para dormir, matá-o, para que ele não nos engane
mais. É o que ele merece.
De
volta para casa, o diabo e seu empregado se deitaram para dormir, mas o cigano,
evidentemente, percebeu alguma coisa, porque colocou seu casaco de pele no
banco onde geralmente dormia e escondeu-se sob o banco. Quando chegou a hora, o
diabo pensou que o cigano estivesse em sono profundo, pegou uma barra de ferro
e bateu no casaco de pele com tanta força que o som vibrou, espalhou-se por
todos os lados e ecoou ao longe. Ele então se deitou para dormir, pensando:
—
Oho! Agora é amém para o cigano!
Mas
o cigano resmungou:
—
Oh! — e fez um barulho sob o banco.
—
Que tens? — surpreendeu-se o diabo.
—
Oh, uma pulga me picou.
No
dia seguinte, mal nasceu o dia, o diabo retornou correndo ao mais velho para se
aconselhar.
—
Mas como matá-lo? — indagou ele. — Quando lhe bati com um ferro, com todas as
minhas forças diabólicas, ele só fez um barulho e disse que uma pulga o picara.
O
velho diabo meditou por algum tempo, depois deu seu conselho.
—
Então paga-o agora — disse ao jovem diabo — tudo o que ele quiser e manda-o
cuidar de sua vida.
Assim
fez o diabo e o cigano recebeu um saco de ouro e foi embora. Então o diabo
ficou arrependido de ter gastado tanto dinheiro e consultou o mais velho de
novo.
—
Alcança o cigano e propõe-lhe um desafio: quem chutar uma pedra com mais força
ficará com o dinheiro.
O
diabo saiu imediatamente no encalço do cigano.
—
Espere, cigano! Tenho uma proposta a lhe fazer — falou, assim que o encontrou.
—
O que você quer agora, filho do inimigo?
—
Vamos chutar uma pedra. Quem a chutar com mais força, ficará com o ouro.
—
Mas eu já tenho o ouro.
—
Então, se ganhar, eu lhe darei um outro saco de ouro.
—
Se é assim, então pode chutar — disse o cigano.
O
diabo chutou uma pedra com toda a sua força, provocando um estrondo que ecoou
longe, mas o cigano, sem que o diabo percebesse, derramou água numa
pedra
antes de chutá-la.
—
Eu ganhei, seu idiota! — disse o diabo.
—
Ganhou coisa nenhuma. Eu chutei mais forte. Chutei com tanta força que
arranquei
água da pedra.
O
diabo ficou possesso, pagou, mas foi de novo em busca de mais um conselho. O
mais velho disse:
—
Faça um novo desafio. Leve seu cetro e aquele que o jogar mais alto ficará com
todo o ouro.
O
diabo gostou da idéia, pois seu cetro feito de aço era muito pesado, pesado demais
para o velho cigano. Além disso, era seu objeto mais estimado e símbolo de seu
poder.
O
cigano já havia percorrido um bom trecho do caminho, quando olhou para trás e
viu o diabo em seu encalço.
—
Para! Espera, cigano!
—
O que você quer, filho do inimigo?
—
Vamos ver quem atira meu cetro mais alto. Quem vencer, ficará com todo o ouro.
—
Mas eu já tenho o ouro — protestou o cigano.
—
Se eu perder, eu lhe darei o dobro.
—
Sendo assim, vamos lá. Tenho dois irmãos ferreiros no céu e ficarão muito
felizes
em usar o cetro para fazer um bom martelo e um alicate de primeira —
disse
o cigano, fingindo uma satisfação inesperada.
O
diabo, então, se preparou e arremessou o cetro para o alto. Lançou-o com tanta
força que o cetro zumbiu no ar e quase sumiu no alto, caindo em seguida.
O
cigano o apanhou. Era pesadíssimo e ele mal conseguia segurá-lo. Olhou para o
alto e gritou:
—
Hei, irmãos, estendam as mãos um pouco mais para a direita... Sim, aí mesmo.
Vou jogar. Podem pegar. Preciso que me façam um bom martelo e um forte alicate,
pode ser?
Quando
fez menção de jogá-lo, o diabo agarrou sua mão, impedindo-o.
—
Não! Para! Seria uma pena derreter o cetro. Você ganhou — reconheceu, a
contragosto.
O
diabo o pagou e correu novamente ao diabo mais velho para se aconselhar.
O
diabo mais velho pensou bastante, depois aconselhou-o:
—
Alcança-o mais uma vez e proponha: quem correr mais rápido até um certo
ponto,
ficará com o ouro.
O
diabo alcançou o cigano e lhe fez a proposta, ao que o outro lhe disse:
—
Sabe de uma coisa? Não vou disputar mais com você, porque não é páreo
para
mim, mas tenho um filho pequeno, Hare, que tem apenas três dias de idade.
Se
você conseguir alcançá-lo, então disputarei com você.
O
cigano vira uma lebre no descampado e disse:
—
Lá está ele! Hare vá! Agora, então, pega-o — apontou ele ao diabo.
Quando
a lebre, assustada com o grito, disparou, o diabo saiu em quase
voando
atrás dela, mas a lebre corria em ziguezague, levantando uma nuvem de
poeira
atrás dela, driblando-o e deixando-o para trás.
—
Bah! — exclamou o diabo. — Ele não corre em linha reta.
—
Na minha família ninguém corre em linha reta. Hare corre como lhe agrada
e
como todos da família.
O
diabo pagou novamente e retornou com o rabo entre as pernas. O mais velho diabo
aconselhou-o a lutar. O mais forte ficaria com o ouro e lá foi novamente o
diabo atrás do cigano.
—
Eh! — disse o cigano, você não desiste mesmo. Ouve as condições para eu
lutar
com você: tenho um pai, é tão velho que nos últimos sete anos vive recluso
em
uma caverna, onde tenho levado alimento para ele. Não se banha e não cortou
os
pêlos do corpo por todos esses anos. Se você o derrubar, então luto com você.
Ocorre
que o cigano sabia da existência de um velho urso nas redondezas e
levou
o diabo até sua caverna.
—
Vá! — disse ele. — Desperta-o e luta com ele.
O
diabo entrou e vociferou:
—
Levanta-te, peludo! Vamos ter uma luta. Ai de mim! — choromingou de
imediato,
quando o urso o abraçou, cravou suas garras nele, mordeu-o e o jogou
para
fora da caverna. Pela última vez o velho diabo o aconselhou para que
disputassem quem assobiava melhor e mais alto, tanto que pudesse ser ouvido o
mais longe possível.
—
Quem assobiar mais alto, fica com todo o ouro — propôs.
—
Mas eu já tenho o ouro — replicou o cigano.
—
Eu dobro, se perder.
—
Mas se eu ganhar, terás de me dar também uma carroça e um bom cavalo para levar
todo esse ouro.
—
Que assim seja — concordou impaciente o diabo.
—
Sendo assim, pode assobiar.
O
diabo assobiou tão alto que o som ecoou por quilômetros.
Mas
o cigano disse:
—
Sabe de uma coisa? Quando eu assobiar, vais ficar cego e surdo. Enfaixa
teus
olhos e ouvidos para protegê-los.
O
diabo assim o fez. O cigano pegou duas lascas de um tronco caído ao lado e
bateu-as
contra os ouvidos do diabo.
—
Oh, para! Oh! não assobie mais ou vais me matar! Que a má sorte te acompanhe
com teu cavalo, tua carroça e teu ouro! Vai para onde eu nunca mais
possa
ouvir-te de novo! Não há como superar-te — desistiu o diabo, retornando
com
o rabo definitivamente entre as pernas. Isso é tudo.
Fonte:
Wratislaw, A. H.
Sessenta Contos Folclóricos de Fontes Exclusivamente Eslavas. Boston: Houghton,
Mifflin, & Company, 1890.