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ISTO É - COMPORTAMENTO - N° Edição:
2015 | 18.Jun.08 - 10:00 | Atualizado em 11.Out.13 - 17:33
Os ciganos
modernos
REPORTAGEM DE CARINA RABELO
VIDA
DUPLA - Carlos Batuli com as filhas, a médica Iordana (à esq.) e a advogada
Carla: quatro filhos na faculdade
Mirian
tinha apenas 12 anos quando passou pelo maior constrangimento da sua vida. Ela
estava na sala de aula quando uma menina da sua turma perdeu uma caneta de ouro
e, imediatamente, apontou a culpada. "Foi a cigana!", acusou. Mirian,
a única aluna que teve a sua mochila revistada na turma, chorava num canto,
enquanto os colegas assistiam à humilhação pública. Nada foi encontrado. No dia
seguinte, a menina achou a caneta. "Não vai me pedir desculpas?",
questionou Mirian. A resposta veio com arrogância: "Não. Porque cigano é
ladrão mesmo". Elas se atracaram na frente da diretora e os pais foram
chamados na escola. O cigano Alberto, pai de Mirian, acostumado a ser ofendido,
ficou calado e de cabeça baixa, mesmo ciente de que a filha era a vítima.
Mirian teve de se defender sozinha para permanecer na escola. Naquele momento,
decidiu que seria advogada.
Mirian
Stanescon, 60 anos, foi a primeira cigana a ter curso superior no País. Ela se
formou em direito na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, em 1973, e
resolveu se dedicar à causa dos ciganos Foi procuradora de Nova Iguaçu e, como
advogada, elaborou em março, junto ao governo federal, uma cartilha de direitos
do seu povo, como o registro do nascimento, saúde e educação públicas, que
deverá ser distribuída aos 900 mil ciganos em todo o País. "Estima-se que
a Romênia seja o país com a maior comunidade cigana. O Brasil é o
segundo", afirma Perly Cipriano, subsecretário de Direitos Humanos da
Presidência da República. "Eles ainda são muito perseguidos e precisam da
proteção do Estado."
Os
primeiros ciganos chegaram ao Brasil em 1574, expulsos da Europa pela Igreja
Católica, que os considerava "um povo diabólico". No Brasil, se
dividiram entre Calons - de origem portuguesa e espanhola - e Roms, do leste
europeu, divididos em sete clãs - Kalderash, Moldowaia, Sibiaia, Roraranê,
Lovaria, Mathiwia e Kalê, que se estabeleceram principalmente no Rio de
Janeiro, Paraná, Pará, na Bahia e em São Paulo. Durante a segunda guerra
mundial, os ciganos europeus perseguidos por Hitler aumentaram o contingente da
comunidade brasileira. Para
preservar as tradições, a maioria deles evitava convívio com os
brasileiros.Alguns trabalhavam como menestréis, ferreiros, artistas e damas de
companhia, mas a maioria vivia em economia de subsistência. Isolados nas
barracas, não acompanharam as inovações tecnológicas e rejeitavam o acesso à
educação, temendo perder as tradições. "A partir dos 13 anos, a escola era
vista como um perigo por causa do convívio entre meninos e meninas. Até hoje,
nem todas as famílias deixam a criança estudar após o ensino fundamental",
afirma Patrícia Szameitat, 32 anos, cigana formada em enfermagem por influência
da avó. "Ao contrário da maioria das famílias ciganas, a minha sempre foi
matriarcal e a minha avó priorizou a educação", conta. Aos 17 anos, ela
abriu mão do casamento com um primo - que só tinha visto duas vezes - pela
faculdade. Patrícia permanece solteira e quer estudar física nuclear.
"Muitos ciganos questionam por que ainda não tenho marido e filhos, mas
não ligo. Não tenho pressa", diz.
Em
geral, as mulheres são mais interessadas nos estudos do que os homens, que
trocam a faculdade pelo comércio para sustentar a família. Mas, atualmente,
eles já sabem do valor de um diploma. Carlos Alberto Batuli, 59 anos, conhecido
como Carlinhos Cigano em Nova Iguaçu (RJ), onde fica a maior comunidade cigana
no Brasil, criou a prole com este objetivo. Ele decidiu que os seus quatro
filhos não enfrentariam as dificuldades que os seus parentes tiveram para
conseguir emprego. "Meus primos tinham vergonha de dizer que eram ciganos.
Eu queria que os meus filhos tivessem orgulho da origem e fossem respeitados na
sociedade", conta.
O
esforço compensou. Iordana se formou em medicina, Carla em direito, Patrícia em
educação física e Carlos Dreik cursa fisioterapia. "Sou muito grata ao meu
pai. Não deixei de ser cigana porque fiz faculdade e meu marido, que também é
cigano, entende os meus plantões e respeita a minha escolha", afirma a
ginecologista Iordana Carla de Sá Batuli, 33 anos. "Evolução não significa
perder as tradições. Afinal, não vivemos como há 200 anos", complementa a
sua irmã, a advogada Carla Andréia Batuli, 32.
PRECURSORA
Primeira cigana com curso superior, Mirian ajudou a elaborar a cartilha.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmY5wcVNwYwC4emRsRroCORIFZkzTPSrCk2ZriBoqGkLBvtNw6E5cLfqfcUksN3nGdC3ZpvLloJYsT6u3LQxuBU2Bh7sW313rM4P4xv5vdAfpPWhaAQr5uE5XrgAlNx7Y3xZ9MWJ3eq-U/s320/i42388.jpg)
Fonte -
http://istoevip.terra.com.br/reportagens/5055_OS+CIGANOS+MODERNOS
Eles preservam a cultura, mas dão
valor ao estudo até para defender seus direitos, agora expressos em cartilha do
governo